A espiritualidade da cruz


Quem não tem uma espiritualidade cruciforme, faria bem em adquiri-la, e não existe tempo mais propício para isto do que a Quaresma. Nosso melhor refúgio e proteção é a Cruz de Nosso Senhor e, por isso, trazê-la ao peito ou pendurá-la na parede de nossa casa é sinal de devoção que deve, por sua vez, refletir-se em nossa vida.
Encontramos na Cruz a plena manifestação do Mistério da Misericórdia divina. Deus nos perdoa, pelos méritos do Filho unigênito, cujo sacrifício redentor lavou a mancha do pecado, contraída pelo primeiro patriarca da humanidade, Adão. São Paulo descreve: “Deus não poupou seu Filho, mas por todos nós O entregou” (Rm 8,32). O Filho, por sua vez, adere, livremente, ao plano do Pai: “O Filho de Deus me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20) - eis o supremo gesto de misericórdia.Para isso, “Ele se fez obediente até à morte e morte de cruz” (Fl 2,8), assumindo a dor e o vexame de ser despido e exposto à zombaria da populaça: “Se és o Filho de Deus, desce da cruz!” (Mt 27,40). E se Ele descesse? Não o fez, porque seu alimento é cumprir a vontade do Pai, conforme Ele mesmo já havia afirmado (cf. Jo 4,34). Aquela seria a sua Hora, o seu verdadeiro batismo, que Ele esperava com ânsia que se realizasse (cf. Lc 12,50). Essa humilhação chega ao ápice da entrega na Cruz: “Tudo está consumado”(Jo 19,30). “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46).A dimensão sublime e transcendente da Crucifixão, a princípio incompreendida pelos discípulos, gerou em quase todos um grande escândalo. Refiro-me, de modo particular, àqueles que encontraram Jesus na estrada para Emaús. Não conseguindo admitir que o Senhor e sua missão tivessem final tão trágico, abandonaram a comunidade de Jerusalém e seguiram para Emaús, arrastando, na poeira do caminho, o fardo da decepção: “Nós esperávamos que fosse Ele quem haveria de restaurar Israel e agora, além de tudo isto, é hoje o terceiro dia em que essas coisas sucederam” (Lc 24,21). Ao invés de buscar apoio na comunidade, quiseram enfrentar sozinhos a crise que se abateu sobre eles após os padecimentos e a Crucifixão de Cristo. E foram embora, como que sem rumo certo... Foi ao longo dessa caminhada que o próprio Senhor lhes apareceu, e eles nem O reconheceram. Esta é uma dificuldade nossa: imersos nos próprios problemas, às vezes, não identificamos Jesus, que se comunica de uma forma bem clara - pela voz de uma criança, de um amigo ou de um representante de Deus, através da leitura de um bom livro e, até mesmo, do sofrimento, que nos acomete...Jesus começa a explicar para aqueles discípulos o conteúdo das Escrituras: “Ó gente sem inteligência! Como sois tardos de coração para crerdes em tudo o que anunciaram profetas! Porventura não era necessário que Cristo sofresse essas coisas e assim entrasse na sua glória?” (Lc 24,25-26). Os dois discípulos envolvem-se de tal forma na conversa, que seus corações ardem de entusiasmo e começam a se encher de esperança. Finalmente, reconhecem o Senhor ao partir do pão, naquele momento que identificamos como uma celebração eucarística. Jesus vem consolar e confirmar na fé, durante a hora mais terrível de crise daquelas duas pessoas. Depois desaparece, deixando, como marcos da sua presença, os gestos e palavras que suscitam em nós um ardor de ordem transcendente... “Quando eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim” (Jo 12,32). A forte expressão deste versículo resume a obra redentora de Cristo, na qual se fundamenta a missão de cada um de seus seguidores. No seu ato de união à Cruz, São Paulo afirma: “O que falta às tribulações de Cristo, completo na minha carne, por seu corpo que é a Igreja” (Cl 1,24). A Paixão de Cristo é, evidentemente, completa em si. Mas cada um de nós precisa aceitar sua própria participação nela. Esta aceitação Jesus não pode assumir por nós, porque temos a liberdade e a necessidade da adesão da fé e da confiança.Se olharmos nossa própria experiência, quando é que isto acontece? A vida está cheia de cruzes. De ordem física - dores, doenças e a própria morte; de ordem moral - pecados e falhas cometidas e, também, humilhações e injustiças recebidas. Isto tudo faz parte do Mistério da Cruz, até mesmo a aparente incógnita do sofrimento dos inocentes, como o das crianças. Como explicá-lo? Cada uma delas está seguindo a morte do próprio Cristo, está completando, da sua parte, o quinhão que cabe a cada um de nós na Paixão de Nosso Senhor, na solidariedade que nos une a Ele e aos demais.Mesmo nas situações mais gratificantes, como o relacionamento e o convívio com os outros e o trabalho pastoral, não estamos imunes às decepções e desilusões. Nós esperávamos... assim falavam os discípulos de Emaús. Mas depois que encontraram Jesus, o que esperavam ou queriam passou a ser secundário. Deus deseja que colaboremos com o seu plano de amor, e não que lhe imponhamos nossas perspectivas. Acima de tudo, que a sua vontade se faça e, quem sabe, de vez em quando, a nossa, se coincidir com a d’Ele, naturalmente. Entretanto, em nenhum momento pode faltar a esperança. Pois, “então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem. Todas as tribos da terra baterão no peito e verão o Filho do Homem vir sobre as nuvens do céu cercado de glória e de majestade” (Mt 24,30). “Deus mesmo estará com eles. Enxugará toda lágrima de seus olhos e já não haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor, porque passou a primeira condição” (Ap 21,3-4).Não se pode querer afastar a Cruz do nosso cotidiano, ou subtraí-la à nossa realidade. As cruzes dos cemitérios estão aí, apontando para Deus e para os irmãos. O Cristo do Corcovado testemunha a Cruz Redentora, vitoriosa sobre a morte. Nós mesmos somos feitos em forma de cruz, ou melhor, a nossa envergadura moldou o formato da cruz, como lógica do nosso existir. Portanto, que o nosso sinal seja sempre o Sinal da Cruz, em todos os momentos. Meu pai terminou a sua vida traçando este Sinal, bem devagar, “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. E deixou de respirar o ar da terra, para respirar a bem-aventurança eterna. Que Deus nos conceda a graça de semelhante despedida do mundo transitório. Ao final de nossa caminhada, possamos todos engolfar-nos nos braços de Jesus Cristo, que penderam da Cruz para nos salvar e se abrirão para nos acolher no seu eterno convívio feliz.


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